Gabriel Pereira de Oliveira


Terra seca, chão duro e rachado, árvores despidas de folhas, falta d’água. As imagens do bioma da caatinga aparecem hoje como óbvias e consagradas em torno da seca. Trata-se, afinal, da parte onde menos chove no Brasil e que muito frequentemente é pauta de noticiários em função da escassez hídrica, evocando sensações de comoção e caridade.

Tais paragens, entretanto, estão longe de ser um deserto estéril, calcinado pelo sol abrasador dos trópicos. Aliás, em meio a uma rica diversidade socioambiental, essa área constitui a região de clima semiárido com maior média de pluviosidade e com uma das maiores densidades populacionais, talvez até a maior, do planeta (MALVEZZI, 2007: 10; AB’SABER, 1999: 30).

De origem indígena, o próprio nome da vegetação da região deixa claro esse caráter sempre incerto e mutante do clima, marcado por duas estações muito bem definidas, embora de duração variável. Caatinga significa “mata branca”, fazendo alusão à experiência de boa parte das árvores de perderem suas folhagens nos períodos de estio, dando à vegetação uma cor pardacenta. Apesar das dificuldades devido à falta d’água, sobretudo quando a estiagem se prolonga por vários meses, essa época chamada de verão também tem suas belezas. Para José Martins d’Alencastre (1831-1871), que atuou como promotor no Piauí entre 1851 e 1857, esses momentos permitiam desfrutar um “luar brilhante – não há natureza mais encantadora” (D’ALENCASTRE, 1857).

Porém, logo vêm as primeiras chuvas e, após longos e ardentes meses de verão, a natureza se transforma. Bastariam chegar nuvens carregadas para poder ouvir o zumbido mais forte dos insetos, para ver uma infinidade de borboletas coloridas em meio ao aroma de flores diversas. De acordo com d’Alencastre, “com o aparecimento do inverno, os campos se cobrem da mais linda e abundante verdura, as árvores se vestem de novo, e a natureza como que parece rir-se por entre a vegetação que pulula como por encanto” (D’ALENCASTRE, 1857).

Diante da ideia recorrente de que o Brasil teria como sua grande marca a natureza exuberante, com toda a pujança tropical, a ocorrência de uma região tão peculiar como a das caatingas deve chamar bastante atenção. Especialmente o século XIX foi um período muito interessante nesse sentido, quando o Estado monárquico precisou lidar diretamente com uma conformação do território nacional que envolvesse áreas como os chamados sertões secos do Norte.

Um trabalho muito relevante a esse respeito foi feito em 1824 pelo botânico germânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), quando lançou suas reflexões sobre “A Fisionomia do Reino Vegetal no Brasil”. Nesse trabalho, ele buscou dar conta da diversidade ecológica do país recém-independente que ele percorrera alguns anos antes, e dividiu o território brasileiro em cinco reinos fitogeográficos, associando cada um a elementos da mitologia grega. Anos depois, por volta de 1850, Martius até representou esses domínios vegetais no mapa reproduzido abaixo (fig. 2).

Fig. 2.; Fig. 2a: Tabula geographica Brasiliae et terrarum adjacentium exhibens itenera botanicorum et florae brasiliensis quinque províncias. Disponível em: Acervo Digital – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Dentre os domínios vegetais a compor o território gigantesco do Império brasileiro, estava o Reino das Hamadríades, correspondente às áreas secas do Norte do Império, as chamadas caatingas. Como, em geral, as árvores dessa região perdiam suas folhas a cada estação de estiagem e se revigoravam tão logo chegavam as chuvas, Martius associou tal porção do Brasil às hamadríades, ninfas gregas dos bosques de carvalhos que nasciam e morriam junto com as árvores onde moravam.

A generalização no mapa dessa área seca do reino das Hamadríades por parte considerável de províncias do Norte mostra o quanto aquelas paragens eram ainda não muito bem conhecidas na capital do Império brasileiro no século XIX. Tratava-se de uma região distante da Corte do Império e de difícil comunicação com o distante Rio de Janeiro. Aliás, a separação em relação à capital imperial não era somente medida em léguas de distância, em diversidade de vegetação ou clima, mas era também um isolamento das gentes, de modo geral bastante apartadas do ideal de cidadão brasileiro. Diante das clivagens regionais, as populações do interior do Norte árido pareciam muito estranhas ao corpo da nação, sendo mesmo um grande desafio sentir-se parte de um todo nacional.

Na visão de muitos membros que orbitavam em torno da Corte, os sertões áridos do Norte eram perigosos, um lugar de atraso e barbárie, onde a lei e a ordem monárquica não haviam conseguido chegar. Mesmo para boa parte dos habitantes da região que Martius associou às Hamadríades, era muito complicado reconhecer-se como parte da nação Brasil sediada no distante Rio de Janeiro. Houve, inclusive, em alguns momentos no Norte a oficialização de uma secessão em relação ao Império brasileiro, como em revoltas e rebeliões ao longo do século XIX.

Quando esteve em províncias do Norte entre 1859 e 1861, o botânico fluminense Freire Alemão (1797-1874) relatou que ali era comum a aversão ao governo monárquico do Rio de Janeiro. De acordo com ele, a “República é o sonho dourado deste gente”. Aliás, o próprio Rio de Janeiro aparecia em tal região “como um país estrangeiro” (ALEMÃO, 2011).

Como analiso em meu trabalho de doutorado que venho desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro sob a orientação de José Augusto Pádua, incorporar essa extensa e povoada região de caatingas ao corpo político imperial foi um desafio de grade relevância ao governo brasileiro no século XIX. E mais do que uma questão de pura política com imposições tecidas desde o Rio de Janeiro, essa foi uma experiência que envolveu aspectos do clima, saberes e projetos para tentar controlar a frequência das chuvas e variados protagonistas, com trocas, negociações, alianças ou desavenças entre gentes das mais diferentes partes do país.

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