José Rogério Beier
Se os séculos XVI e XVII foram marcados pela expansão marítima de alguns países europeus e a consequente conquista de novos territórios coloniais na África, Ásia e América, pode-se dizer que o século XVIII registra uma mudança desta “cultura de latitude”, ou expansão marítima, para uma “cultura de longitude”, ou expansão terrestre, como bem lembrou a historiadora e arquiteta urbanista Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (2004, p. 230). Ainda segundo essa autora, o papel desempenhado por padres jesuítas e engenheiros-militares foi fundamental para o processo de interiorização e formação do território da América portuguesa, no qual se devassou os sertões e se levantou as potencialidades econômicas e informações geográficas que garantiram melhor controle do território sob o domínio português e auxiliaram nas negociações dos tratados de limites com Espanha.
Para o historiador português, Jaime Cortesão, a vinda de padres jesuítas e engenheiros militares à América portuguesa ganhou impulso a partir da leitura que o primeiro geógrafo do rei da França, Guillaume Delisle, fez de sua dissertação perante a Academia Real das Ciências de Paris, em 1720. Intitulada Determination géografique de la situation et l’entendue des diferentes parties de la Terre, esta dissertação marcou a primeira tentativa de remodelar toda a carta da Terra, compilando em um só mapa as alterações de posição dos territórios obtidas a partir das observações das longitudes por meios astronômicos. As correções feitas por Delisle expunham a transferência de soberania operada pela cartografia portuguesa em relação ao vasto território espanhol situado a oeste de Tordesilhas (CORTESÃO, 2006, p.274-276).
Tão logo foi informado das conclusões de Delisle em Paris, d. João V convenceu-se de que era indispensável renovar a cartografia portuguesa através dos novos métodos, especialmente da cultura astronômica, a fim de conferir base científica à diplomacia portuguesa no intuito de “obviar as futuras alegações do governo espanhol, fundadas na situação do meridiano de Tordesilhas” (CORTESÃO, 2006, p. 277-280).
Assim, já em 1722 d. João V manda vir a Portugal dois padres jesuítas napolitanos especialistas em matemática, astronomia, geografia e cartografia: João Batista Carbone (1694-1750) e Domingos Capacci (1694-1736). A eles juntou-se Diogo Soares (1684-1748), também jesuíta, natural de Lisboa e professor da “aula de Esfera” no Real Colégio de Santo Antão[1]. Por sete anos, os padres aguardaram em Portugal pela aquisição da aparelhagem técnica e a indispensável aprendizagem dos novos métodos de medição astronômica. Finalmente, em 1729, o rei português envia os padres matemáticos ao Estado do Brasil, com a tarefa de “fazerem-se mapas das terras do dito Estado não só pela marinha, mas pelos sertões; […] e para esta diligência nomeei dois religiosos da Companhia de Jesus, peritos em matemáticas, que são Diogo Soares e Domingos Capacci, que mando na presente ocasião para o Rio de Janeiro” (GESTEIRA, 2012, p. 207-224).
Assim, não se incorre em erro ao afirmar que as primeiras observações astronômicas realizadas na capitania de São Paulo remontam a vinda dos padres matemáticos à América portuguesa para o levantamento de suas famosas Cartas da Costa do Brasil, atualmente mantidas no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa.
[1] “Aula” era o termo utilizado para representar as instituições e práticas educacionais no mundo português. (NEVES, 2000, p. 55-58).
Para o levantamento das coordenadas geográficas dos principais povoamentos e fortalezas, em especial o da longitude, a técnica empregada pelos padres matemáticos era aquela desenvolvida por Galileu Galilei no final do século XVI, baseada na observação dos eclipses dos satélites de júpiter. Tal técnica acabou sendo adotada por geógrafos, cartógrafos e topógrafos de todo o mundo para a medição da longitude em terra.
Vale lembrar que quase um século antes dos padres matemáticos, em 1640, o naturalista e cosmógrafo de origem germânica, George Marcgrave, já realizara observações dos eclipses dos satélites de Júpiter e levantamentos de longitude empregando essa mesma técnica no observatório astronômico instalado na casa do Conde Maurício de Nassau, no Recife. A precisão das cartas geográficas elaboradas por Marcgrave a partir desse método, só voltariam a encontrar par na América portuguesa no segundo quartel do século XVIII, justamente com a produção dos padres matemáticos (CINTRA; PEREIRA, 2014, v.1, p. 197-226).
Depois da vinda dos padres matemáticos, dezenas de engenheiros-militares foram enviados à América portuguesa, sobretudo, no âmbito das partidas de demarcações de limites entre as possessões americanas das Coroas Ibéricas decorrentes do Tratado de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777). Ainda assim, poucas foram as cartas geográficas elaboradas na escala da capitania entre a década de 1730 e a primeira metade da década de 1780. Muitos desses engenheiros trabalharam nas partidas de demarcações dos tratados de limite e, quando não estavam nas demarcações, acabavam elaborando cartas que diziam respeito a porções de terrenos ou cursos de rios relacionados às expedições de exploração que comandavam, geralmente, com o fim de mapear uma região. Exemplos claros dessa atuação são os mapeamentos do sertão de Guarapuava, do Iguatemi, do Ivay, do Tibagi ou o mapeamento do curso para a navegação fluvial do rio Tietê. Será apenas com a chegada do capitão-general Bernardo José de Lorena, em 1788, que se estabelecerá uma divisão de engenheiros, matemáticos e astrônomos na Capitania de São Paulo, que atuarão firmemente na elaboração de uma série de novas cartas na escala da capitania, consideradas bastante precisas para a época.