Elemir Soares Martins
O meu Estado de Mato Grosso do Sul conta com 77.025 indígenas, das etnias Guarani, Kaiowá, Terena, Kinikinawa, Kamba, Ofaié, Guato, Chamacoco, Kadiwéu e Atikum, segundo os dados da ISA (2013). Dessas etnias, os Guarani e Kaiowá, das quais faço parte, contam com pelo menos 61.158 pessoas, lembrando aqui que os indígenas dessas etnias, que moram nas periferias dos municípios, não foram contabilizados, pois eles, na maioria das vezes, são invisibilizados pelo poder público e também pelos brancos preconceituosos. Os mesmos brancos que praticam violências contra esses povos, se acham no direito de escolher os destinos deles, alegando que eles não são capazes de planejar os seus destinos, tampouco a sobrevivência. Para se sentirem superiores diante dos meus parentes indígenas, os chamam de “índio, de bugre, de indinho ou indinha” etc. Falo disso, pois faço parte desses povos que sofreram violências simbólicas e ainda sofrem todo tipo de violência.
Historicamente, o meu povo sofreu com a ação de colonizadores e do Estado brasileiro, pois viram os seus territórios tradicionais nas mãos dos estranhos e sendo explorados em prol do “progresso”, lembrando aqui que, nessa época, utilizavam a arma de fogo, as Leis que os favoreciam, ao mesmo tempo contando com os políticos. Essa ação de desterritorialização ocasionou vários problemas que precisam de mais aprofundamento nas pesquisas acadêmicas acerca do ponto de vista indígena. As mentiras que foram utilizadas pelos brancos para se apossarem dos nossos territórios, não podem ser maiores que as nossas histórias de resistência. Em nossos territórios temos a figura dos rezadores, onde eles atuam como nossos eternos historiadores, ao mesmo tempo fortalecem nossos costumes, nossas rezas, valores e relações. Através dessa sabedoria milenar, não só dos rezadores e das rezadoras, mas sim de anciões e anciãs também, o povo guarani e kaiowá tem conseguido resistir a várias doenças que os colonizadores trouxeram.
As reservas que foram criadas pelo Estado brasileiro com a ajuda do SPI, entre 1915 e 1928, transformaram-se numa espécie de coliseu para violação de direitos indígenas e de genocídio. Descrevo isso, pois no ano de 1980, conforme os relatos dos indígenas da etnia Guarani e Kaiowá da Reserva de Caarapó/MS, os madeireiros vieram e derrubaram todas as perobas que haviam pelas regiões da reserva, concomitantemente, trouxeram-lhes algumas doenças, como por exemplo, tuberculose, algumas doenças sexualmente transmissíveis etc. Essas contaminações aconteciam, uma vez que esses brancos não respeitavam as organizações indígenas e as mulheres. É comum ouvir os anciões, as anciãs, os rezadores e as rezadoras contarem sobre isso no meio da parentela ou durante as entrevistas de pesquisas. Essas contaminações, violações de direitos e violências, não são comuns na nossa realidade, no nosso cotidiano e nas nossas tradições, o que deixa o meu povo mais atormentado sabendo que os brancos poderão percorrer, de novo, as aldeias indígenas disseminando o vírus, o inimigo invisível, se modernizando para tentar nos enganar e quem sabe obter êxito no processo de genocídio.
Também pelas áreas retomadas, a Covid-19, conhecida pelo coronavírus, tem intensificado, colocando temor em várias pessoas, em função do não investimento do poder público nas reservas/aldeias/retomadas indígenas, sobretudo na área de saúde e da educação. O cenário de violação de direito e de não investimento da saúde indígena foi se transformando em vários números de óbitos indígenas. Segundo os dados disponibilizados pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Ministério da Saúde, no dia de 19 de junho de 2020, há 4.063 casos confirmados registrados em Terras Indígenas. A chegada dessa pandemia em territórios indígenas têm mostrado várias lacunas de promessas dos políticos, sobretudo no que diz respeito a “melhorias para populações indígenas”. As oito reservas demarcadas pelo Estado brasileiro, juntamente com SPI, entre 1915 e 1928, não oferecem muitos subsídios na produção do bem viver, vida sustentável, alimentos tradicionais, remédios tradicionais, que são indispensáveis para proporcionar a proteção e a cura das doenças.
A falta desses remédios tradicionais também vem agravando os papéis dos rezadores guarani e kaiowá e ameaça as condições de vida do meu povo. Quando a notícia sobre o coronavírus chegou para nós Guarani e Kaiowá, coincidiu com a esperança do meu povo de retomar e ver seus territórios demarcados, que começou desde a década de 1970, até porque a violência física imposta aos Kaiowá e aos Guarani foi extensa, sendo o processo de expulsão das terras que tradicionalmente ocupavam, acompanhado por formas de violência simbólica. Contudo, a partir da força de resistência e de habilidade de articulação dos rezadores, retornaram às suas áreas tradicionais, como por exemplo, nos tekoha Guyra Roka, Taquara, Jarara (Juti – MS) – localizados na região do município de Caarapó/MS e Juti/MS. As retomadas que ocorreram, desde 2013, pela região de Caarapó/MS, foram comprometidas e as famílias guarani e kaiowá que habitam nessas áreas, na maioria das vezes, ficaram sem esperança, sabendo que a natureza demoraria para se recuperar e oferecer recursos naturais, e desse modo garantir a resistência.
Mesmo que esse povo lute, ao mesmo tempo ampliando suas pautas de reivindicação de direito, agora se encontra diante dessa pandemia e dos descasos do governo. A imagem acima retrata um pouco da nossa realidade em Mato Grosso do Sul, especialmente nas áreas retomadas guarani e kaiowá, onde falta água potável, recursos naturais e o povo é rodeado pela cana-de-açúcar e a soja. Para eles buscarem água, têm de atravessar o território “inimigo”, que são os fazendeiros (latifundiários) e os pistoleiros. A recomendação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) é que todos fizessem o isolamento social, como forma de garantir a proteção do vírus e de sua disseminação. Assim, mesmo que as lideranças indígenas conseguissem fazer o isolamento social para o seu povo, por outro lado não conseguiriam proteger as demais pessoas que precisam sair das aldeias para trabalhar. Exemplo disso foi o caso de uma mulher indígena de 35 anos, moradora da aldeia Bororó de Dourados/MS, trabalhadora da empresa JBS, que foi a primeira vítima infectada de Covid-19.
A preocupação com esta situação supracitada, vivida pelos povos guarani e kaiowá, mobilizou várias comunidades para formarem equipe de barreira sanitária. Essa barreira tem atuado para minimizar a disseminação desse vírus, bem como mobilizar as pessoas sobre os cuidados que devem ter, de impedirem a entrada de vendedores ambulantes, das demais pessoas que entram nas aldeias. Essa barreira sanitária, através da mobilização de professores indígenas, dos representantes de Aty Guasu, tem conseguido conscientizar as pessoas das aldeias sobre o perigo que essa doença traz. Algumas doações de alimentos, bem como dos produtos de higiene, equipamentos de proteção como máscaras, álcool em gel, foram possíveis através das mobilizações nas redes sociais. Lembrando aqui que nem todas as pessoas conseguem se beneficiar com as doações, levando em conta os números de populações das aldeias indígenas.
Mesmo reforçando o clamor do nosso povo pelas redes sociais, me parece que os políticos não estão ligando para a nossa situação. Estamos reforçando o apoio pela live que estamos fazendo, bem como através do grupo no WhatsApp, para quem sabe chamar a atenção dos órgãos governamentais.
No meio dos casos confirmados em terras indígenas do Brasil, em Mato Grosso do Sul, a primeira vítima do coronavírus faz parte da história dos Guarani, do povo guarani e kaiowá. O Evaristo Garcete, 59 anos, levou consigo uma parte da história/memória da luta indígena, dos saberes indígenas. A segunda vítima foi uma antiga liderança indígena da etnia terena, Atanásio Cabreira, de 67 anos. Os estados físicos apresentados pelos anciões de várias aldeias indígenas guarani e kaiowá são frutos de explorações e ações negativas do estado, dos exploradores da mão de obra, dos fazendeiros e do município.
A preocupação dos Movimentos de Professores Indígenas Guarani e Kaiowá, da Aty Guasu, Aty Kuña, da RAJ etc., tem se intensificado, pois falta medicação, atendimentos de qualidade, e as situações de preconceito, racismo, de violências e ataques aos Guarani e Kaiowá têm trazido consequências inesperadas.
O governo Bolsonaro e os seus seguidores nos preocupam muito, pois eles deixam visíveis que são nossos inimigos. Se não tirarem os nossos direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 pelas armas, podem muito bem nos dizimar com esse vírus. Por isso, estamos tentando nos proteger, mobilizando também a Campanha #VidasIndígenasImportam.
Percebo que, desde que essa pandemia entrou de vez no nosso País, não há a menor vontade de os políticos e do poder público protegerem os povos originários. Assim, nós mesmos teremos que criar, sempre que for necessário, coletivamente, várias estratégias de proteção e de resistência de combate à disseminação do coronavírus pelas aldeias indígenas guarani e kaiowá de Mato Grosso do Sul, para proteger nosso povo.
Elemir Soare Martins é indígena da etnia Guarani Nhandéva, do povo guarani e kaiowá, historiador e pesquisador indígena. Mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.